sexta-feira, 22 de maio de 2009

Bilhete de Identidade

Setenta anos e a mesma folha em branco. Setenta anos e o mesmo bloqueio mental de quem quer escrever tudo e não revelar nada. Pois bem…esta folha já não está em branco. Para os que lêem este texto, a última frase não passou de uma conclusão óbvia, para mim toda ela é dúvida. E esta é a única introdução à minha vida, que a minha memória e o meu talento permitem.

Fico pasmado quando vejo biografias de altas personalidades com mais páginas que a lista telefónica! Já a minha conta apenas os meus fantasmas, pois ela só serve para que me possa libertar deles. Não me recordo de datas, somente sensações…imagens…e de que aproveitei o amor, quando me tocou a minha parte. Fui criado em casa das minhas avós. Ainda tive o prazer de crescer na rua com os meus amigos de sempre. Até aos doze anos o meu ser resumia-se a ser o melhor em tudo. O melhor aluno. O melhor a jogar à bola. O que namorava com a menina com quem todos os outros queriam namorar (se é que se pode chamar de namoro a uns beijinhos mais do que inocentes, ingénuos). Tudo corria pelo melhor e eu fui feliz. Não é à toa que se diz que o pateta é feliz…Não tive irmãos. Ou melhor, tive os meus irmãos das brincadeiras de rua. Não tive abundância material. Mas joguei todos os jogos possíveis e imaginários. Mais do que isso, participei nesses jogos como um dos actores principais. Senti a alegria de marcar um golo. A sensação de sucesso quando durante a semana conseguíamos juntar moedas para um gelado depois do almoço de sábado. Para de seguida passar a tarde a jogar às Escondidas e ao Estica. Senti a crueldade infantil de acertar com a bola num colega, enquanto jogava ao Mata. E a frustração de estar eu encostado à parede a levar com a bola. Mas no fim do dia, estava feliz. Dormia, sonhava, acordava. A vida parecia não ter fim. E lembro-me da minha mãe. Do orgulho com que chegava a casa quando voltava de uma reunião de pais na escola. E das vezes em que ela chorava. Se há imagem com que fiquei foi essa – a minha mãe a chorar.


Na adolescência, como para quase toda a gente, descobri que namorar podia e devia ser mais do que uns beijinhos ingénuos. O meu corpo mudou, mas mais do que o corpo a mente. Cresci de forma abrupta. Até hoje não sei bem como. Mas aconteceu. De um momento para o outro fiquei a ser mais ou menos a pessoa que sou agora. Pelo meio um devaneio pelo mundo louco da juventude. As muitas amigas coloridas. As noites sem ir a casa. As noites que o álcool apagou. Os charros que fumava em conjunto e as farras adjacentes. Os charros que fumava sozinho com os Queen, os Pink Floyd e o Tecno como companhia. Os longos fins-de-semana em que nos juntávamos e colávamos selos de ácido em conjunto. Os concertos Rock. Eu em comunhão com o mundo. A felicidade inicial tinha dado lugar à euforia. A inocência dera lugar ao sentimento de poder. E a minha mãe…que foi feito dela durante este tempo que não me consigo recordar?

À medida que a idade adulta se começava a mostrar, o interesse pelo prazer fácil que a droga proporcionava foi diminuindo. Lentamente desapareceu. Ao contrário, o interesse pelas mulheres evoluía. E de forma desmedida. As miúdas não passavam de um jogo que no fundo me lembravam os jogos de infância. E o prazer desses jogos não era o seu fim, mas sim a participação. A partilha. O todo a ser mais do que a mera soma das partes. O jogo da sedução. Assim que elas caiam o interesse morria. A seguir só restava a angústia que me trazia de pé. O trabalho nunca passou de trabalho. Quando muito, por vezes mudava de lugar e de nome. E a minha mãe que já não chorava. Ou eu não via com a regularidade devida? Ou ela escondia o seu chorar?

Ternura dos quarenta. Se fumava um charro adormecia! As mulheres começaram a perder o seu encanto e a ganhar o meu desinteresse. E o Amor. As noites que dormi, sonhei e acordei a seu lado. E a minha filha. As noites em branco com ela ao colo. Ela a chamar-me “ Pai “. De seguida eu próprio deixei de despertar qualquer interesse. O trabalho continuava um trabalho para mim, até há cinco anos atrás. A minha mãe? Já era avó. E mostrava o seu sorriso.


Algures no Universo, 09 de Setembro de 2050

Se me perguntais de que me recordo, posso-vos falar de Amor. Mas nunca vos vou conseguir dizer o que é. Ou como acontece. Sei que o tenho comigo. As melhores perguntas são assim. Quase nunca têm resposta. O segredo da vida está em fazer a pergunta certa na hora exacta. É tão simples quanto isto. Quanto ao resto? As mulheres são um bicho que desconheço. O trabalho continua um trabalho, só que agora só para os outros! Tenho a Chuva, o Sol, a Lua, o Vento e as Estrelas só para mim. E várias páginas em branco para escrever uma biografia do tamanho de uma antiga lista telefónica. A minha mãe? Para vós já não existe. Vive agora dentro de mim. Finalmente eu choro…durmo, sonho e vou acordando o melhor que há em mim.




Basílio Patrão
Setembro de 2008

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